PEDIATRAS
INSEGUROS E ESCASSOS
João Amílcar Salgado
Um colega e grande amigo comentou meu texto sobre as eleições no CFM,
dizendo que, embora enriquecedor, é, contudo, um reducionismo temerário dividir
a categoria médica entre “negacionistas dominantes” e “uma minoria fiel à
ciência “. Pode ser que outros tenham chegado ao mesmo veredicto. Uma pediatra
brilhante e incansável, minha ex-aluna, por sua vez, confirmou meu depoimento,
pormenorizando exemplos dramáticos da crise de diplomados inseguros e escassez
pediátrica. Diante destas e outras manifestações, reitero aqui meus principais
textos sobre o tema.
DESPEDIATRIZAÇÃO
E REPEDIATRIZAÇÃO
LEÃO
Ênnio Leão e eu
somos considerados autores da inovação pediátrica do ensino da medicina no
Brasil, ocorrida em 1975, na UFMG, que se refletiu internacionalmente. Os três
maiores pedagogos médicos de então, Juan Cesar Garcia, da OPAS, Vic Neufeld, da
Universidade de McMaster, e Henry Walton, da Universidade de Edimburgo,
reconheceram, com entusiasmo, sua originalidade e sua importância. Os estudos
que levaram a isso, de 1971 a 1974, foram possíveis graças ao estímulo corajoso
do reitor, médico e cientista Marcelo Vasconcelos Coelho, em plena ditadura
vigente no país. A alta carga horária pediátrica e as demais inovações
resultaram da análise de nossa pirâmide demográfica e de outros elementos da
realidade de saúde. Trinta anos depois
de tal experiencia, houve quem alegasse que a pirâmide demográfica estava
sofrendo mudança e que chegaria ao ponto de ser necessária a redução do relevo
da pediatria. Respondemos com dois argumentos: 1) a modificação da pirâmide não
seria definitiva porque haveria, cedo ou tarde, necessidade econômica de volta
à adequada natalidade; 2) o lado pedagógico da “pediatrização” proposta traduz
aspectos mais profundos da questão.
De fato, quatro aforismos formulados durante
nossos estudos resumem a pedagogia do ensino pediátrico:
1) Na
realidade de saúde, o médico capaz de bom atendimento pediátrico atende bem e
até melhor o adulto; enquanto o médico capaz de bom atendimento a adultos é
inseguro no atendimento pediátrico - e tende a evitá-lo.
2) O
ensino ampliado da clínica pediátrica, na graduação, não forma o pediatra, mas
prepara melhor este especialista e prepara melhor o clínico de adultos,
inclusive dando a este a segurança para oferecer atenção completa a todas as
faixas populacionais.
3) Na
história do ensino médico, houve a distorção de se ensinar semiologia
exclusivamente por meio do exame de adultos e o êxito em sua correção,
efetivada na UFMG, evidencia claramente o erro do passado.
4) O
aforismo “a doença não tira férias” levou à adoção do calendário contínuo
curricular e atencional, de evidente benefício às crianças.
Diante
do atual colapso da atenção pediátrica no Brasil, nos parece oportuno sugerir
medidas que atenuem ou eliminem tão lamentável consequência do criminoso
descaso para com a saúde e com outras áreas de nossa realidade social.
Propomos
que os participantes da citada experiencia e demais docentes sejam reconvocados
para uma mobilização nacional que alcance todos os cursos de medicina e todas
as equipes de atenção primária e secundária. Os MINISTÉRIOS DA SAÚDE E DA EDUCAÇÃO
ofereceriam bolsas e demais recursos para o treinamento da atenção pediátrica.
O programa MAIS MÉDICOS seria adaptado para funcionar como INTERNATO RURAL de
todas as faculdades próximas e opcionalmente das distantes. As UPAS seriam
adaptadas para incluir o treinamento pediátrico ambulatorial, com a respectiva
remuneração adicional de treinadores e treinandos. A descentralização da atenção primária e
secundária exige a diminuição da insegurança dos profissionais. A insegurança
para clinicar, enfraquece quer o peso da atração salarial, quer o da promessa
de carreira.
Outra
verificação dos levantamentos prévios foi a predominância do atendimento de
adultos em detrimento das crianças nos serviços de urgência-emergência. Na
experiencia citada, concomitante à inovação curricular realizada, o já
existente posto de reidratação infantil para gastroenterite foi adaptado ao
atendimento geral de urgência-emergência pediátrica, que levou à ampliação do
debate sobre o atendimento contínuo em fins de semana, feriados e férias
escolares. A tradição era (e continua sendo) que os hospitais de ensino entrem
em recesso nessas ocasiões. E não é que até mesmo no auge da findante pandemia
gripal, os postos de vacinação adotaram folgas semanais e outros recessos? Urge
reiterar o atendimento contínuo no SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Tal é nossa
esperança na retomada do projeto constitucional da atenção à saúde, segundo o
aforismo por sinal surgido de nossa inovação: a saúde é direito de todos e
dever do Estado.
O PEDIATRA-ANESTESISTA NA EQUIPE MÍNIMA
PARA PEQUENAS CIDADES
Em
1967 propus, ao lado de Cid Veloso, a equipe mínima de três médicos, capaz de
clinicar em pequenas cidades para resolver mais de 90% dos problemas de saúde -
composta de 1) um cirurgião-obstetra-traumatologista, 2) um pediatra
anestesista e 3) um clínico geral. A proposta obteve elogiosa acolhida,
inclusive logo recebemos a grata notícia de que tal equipe já funcionava
espontaneamente em mais de um lugar. Na cidade de Cruzília tal equipe já
funcionava ali há dez anos, composta de José Orígenes Penha, José Maria Nunes
Maciel e José Manuel Nunes Maciel. Também na cidade de Campanha já funcionava a
equipe composta por Zoroastro Oliveira, Sérgio Almeida de Oliveira e Cláudio
Almeida de Oliveira e em Nepomuceno a de Décio Lourenção, Rubem Ribeiro e
Maurício Sarquis. A partir daí, surgiram a equipe de Divinópolis, composta por
Alair Rodrigues de Araújo, Afrânio Ferreira e Antenor Melo, a da cidade de
Mineiros, em Goiás, com Luiz Antonio Luciano, João Paniago Vilela e Clodomiro
Anaya Rojas, a da cidade de Luz com Eolo Torres, Aristides Teles e Mário Klébis
e a de Coronel Fabriciano com José Maria Moraes, Hyde Anacleto e Maurício
Anacleto sendo que em Camanducaia foi esboçada, mas não concretizada.
Locais
em que também houve tentativa de organizar miniequipes foram Varginha, Barreiras, Parintins, Porto
Nacional e hospitais das hidrelétricas de Três Marias, Paulo Afonso e Itaipu. É
de justiça lembrar pelo menos quatro trios precursores da proposta, dois nos
EUA e dois no Brasil:: William, James e CharLes Mayo (Rochester), Osler,
Halsted. Em 1971, conjuntamente com a
formalização da residência médica, tentamos inaugurar a dupla residência em
pediatria e anestesia na UFMG, contra a qual se opôs a corporação dos
anestesistas. Para enfrentar os desafios de hoje, é possível retomar tudo isso.

AS ELEIÇÕES NO CFM E A
TRIFURCAÇÃO CORPORATIVA



Na década de 50 do século 20
foi efetivada a separação das corporações profissionais brasileiras em
associações, conselhos e sindicatos. A única corporação que
continuou atuando de forma unificada foi a Ordem dos Advogados e se atribui a
este fato o prestígio político e moral que a OAB ostenta conservar e que as
demais perderam. Fiz minuciosa pesquisa sobre as razões pelas quais a
corporação médica tão facilmente abriu mão do prestígio assegurado, justamente
quando governava o país um médico, JK, e outro médico, Clóvis Salgado, era seu
Ministro da Educação. Ambos sofriam feroz oposição da UDN, partido da quase
totalidade dos médicos – situação análoga à polarização atual, entre
negacionistas dominantes e a relativa minoria de fiéis à ciência. JK chegou a ser
expulso da Associação Médica de MG.
A trifurcação corporativa em SINDICATO, que cuida
dos direitos, em CONSELHO, que cuida dos deveres, e em ASSOCIAÇÃO, que cuida
das demais prerrogativas, decorre diretamente da ganância crescente da medicina
de consumo, causa de danos irreparáveis, quer ao interesse dos próprios
médicos, quer ao das comunidades a que governo e profissionais devem servir.
Como mostrei em texto anterior, o projeto de
Tancredo Neves para a saúde e a educação foi substituído, sob Sarnei, pelo
favorecimento privado. Isso causou imediata avalanche de faculdades de
fim-de-semana, a cada esquina e ainda em grotões e países vizinhos -
aureamente financiadas por famílias ávidas de filhos-doutores. Os médicos assim
produzidos só poderiam ser clinicamente inseguros, receitadores pelo Google.
Compreensivelmente optaram por escapar da insegurança pela fresta do rápido
enriquecimento financeiro, alcançado através de criativos artifícios. Surgiu
então a paradoxal junção entre o baixo-clero clínico, simbolizado na Doutora
Cloroquina, e o alto-clero financeiro, exemplificado no quarto
homem mais rico do país.